PARTE DOIS
EXAMINAI AS ESCRITURAS
As escrituras, a Fé e a Cultura
O primeiro artigo trabalhou a relação dos “Paradigmas culturais evangélicos” com as “Escrituras”, continuando nosso pensamento, queremos encorajar o “Examinar as escrituras” a partir de uma percepção saudável de sua praticidade, transicionando nossa mentalidade da espiritualização conceitual e mística isolada da vida real, para uma espiritualidade prática, simples, profunda e selada com verdade. Para isso queremos trabalhar a relação das Escrituras com Fé e a Cultura, observando como essa relação coopera com essa proposta de desmistificação, mostrando que a palavra escrita é o resultado final de um processo de Revelação, fé e prática pessoal e coletiva.
Quando falamos das escrituras como temos hoje em nossas mãos, precisamos ampliar nosso entendimento para ver sua influência, bem antes da existência da palavra escrita, pois o que hoje limitados a mera leitura devocional, há muito tempo, foi “Falada” por meio de revelação (Da Parte de Deus), sendo transmitida e aplicada pela fé (Por Seus Profetas e Sacerdotes), mostrando muito relevância pública, modelando o modo de pensar e de viver de um povo (Israel).
Muito antes de terem inventado o seu próprio sistema lingüístico, e mesmo depois da sua adaptação lingüística, os hebreus contavam e recontavam suas histórias, muitas das quais foram posteriormente registradas no que conhecemos hoje como a Bíblia (Nome dado pelos gregos aos rolos de papiro). Essa “Palavra falada” é chamada de “Tradição Oral”, e mostra a forma como Deus fazia parte da vida integral de seu povo. A medida que todos ouviam “essas palavras”, aderiam a fé em Deus, representando um padrão que acabava modelando toda a sua maneira de viver. Mas as histórias não eram o único método de transmissão dessas palavras, haviam também provérbios, orações, poemas líricos, cânticos e até charadas como em Juízes 14.14”.[1]
Portanto, a palavra, a fé e a cultura interagiam de forma natural. Por exemplo: Deuteronômio 6.6-9 diz: “Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te. Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas”. Preste atenção que o “Falar” e o “Andar” mostram a "Palavra em Ação", tornando-se parte integral da fé aplicada na vida real, influenciando o paradigma pessoal, estabelecendo uma cultura coletiva, promovendo a “Palavra de Deus” como uma expressão viva e ativa, ao invés de apenas lida e intelectualizada. Salmo 44.1 confirma esse princípio da transmissão oral: “Ouvimos, ó Deus, com os próprios ouvidos; nossos pais nos têm contado o que outrora fizeste, em seus dias”.
Ambos os textos falam do zelo pela Palavra de Deus, operando primeiramente de forma falada, expressa na forma vivida, sendo posteriormente organizada na forma escrita, porém hoje, priorizamos a palavra escrita, mas não falamos mais sobre ela, não vivemos segundo seus valores e seus princípios não são mais contados entre nós e nossos filhos, resultando em uma cultura moralmente afetada e espiritualmente carente do caráter de Deus.
Tudo começou com a palavra falada, primeiramente pelo próprio Deus, falando diante de todo o povo que ouvia ao pé do monte Sinai (Êxodo 20.19), depois somente a Moisés que entrega dez leis escritas em tábuas de pedra. Provavelmente todas as outras 613 leis (Mandamentos Estatutos Ordenanças) tenham sido transmitidas durante o tempo em que os Israelitas permaneceram acampados no Sinai [2]. Agora poderíamos perguntar por que tantas leis? Porque naquele momento Israel estava sendo definido como Nação. Isso significa que as “Leis definem o Governo de uma Nação Escolhida por Deus”, e partir desse momento identifica-se Israel como “Nação Santa de Deus” (Êxodo 19.6).
Porque a Palavra consolida a fé, moldando comportamento e cultura, Deus estava estabelecendo um padrão pela sua palavra revelada, estava definindo a identidade desse Povo a partir da sua própria natureza, pois quando Deus falava ao povo, falava de si mesmo, influenciando diretamente nas questões civis, sociais, familiares, saúde, economia, ou seja, na vida integral deles como Família e Nação
O interessante é observarmos que não se trata de algo isolado na história, uma vez que em 1750 a.C um Rei babilônico chamado Humurábi provavelmente tenha escrito em uma coluna de pedra, 282 leis recebidas do deus sol [3], sendo assim, organizados por códigos de lei, porém, abrangendo apenas questões civis segundo sua distinção de classes, contudo, mostra claramente que tanto a Babilônia, como Israel, foram ordenados seguindo uma mesma metodologia de implantação e funcionamento. As Leis que ordenaram o povo de Israel são divididas em mandamentos, estatutos e ordenanças, tendo suas respectivas representações para que o caráter de Deus seja revelado em seu povo.
Moisés é o primeiro dentro do relato bíblico identificado como escritor (Êxodo 17.14), porém foi a partir do momento que os hebreus se estabeleceram na terra prometida, que desenvolveram seu sistema próprio de escrita adaptando o alfabeto Fenício para sua própria língua (1050 a 850 a.C) começando o processo que organizou a palavra escrita. Não temos como detalhar esse processo aqui, mas o que é importante para nós agora é entendermos que a “Palavra Escrita” em nenhum momento deve ser tratada de forma isolada da “Palavra Falada e Vivida”. Com isso, quero aqui mostrar a necessidade de rompermos com esse “Velho Paradigma” do dualismo que separa vida cristã da vida “Secular"que segundo nossos dicionários tem como parte de seu significado “Algo Profano”.
Portanto, não podemos ter duas vidas distintas entre si, trata-se de um pensamento ultrapassado, atrasado e inadequado àqueles que foram comprados pelo sangue do Cordeiro, constituídos como Reino e Sacerdócio para Deus, para uma realidade de fé e vida integral, onde a palavra revelada e falada é aplicada, para que sua Cultura possa ser influenciada pelos valores de Deus, desenvolvendo um processo de transformação.
Avançando ao Novo Testamento, entendemos que ele foi escrito e organizado a partir daquilo que Deus disse, ou seja, a Lei e os profetas representam a base de tudo que foi ampliado a partir da vinda e testemunho de Jesus. Lembrando que durante os primeiros anos após a ressurreição, nada foi escrito a respeito de Jesus, pois ele mesmo não deixou nada escrito e nenhuma recomendação para que seus discípulos o fizessem. Além disso, acreditavam que Ele voltaria num futuro imediato, por isso, mantinham suas palavras vivas oralmente.
À semelhança dos primeiros hebreus que se assentavam ao redor dos contadores de histórias, os primeiros cristãos reuniam-se com aqueles que tinham o testemunho de Jesus para saber mais a respeito dos seus ensinos, e esses relatos eram levados cada vez mais longe, sendo organizados e escritos pela próxima geração de discípulos (Primeiro Escrito 60d.C por Marcos). Lucas 1.1-4 diz: "Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram,conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra,igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem,para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído".
Outro fator importantíssimo é que os discípulos não se entendiam como uma nova religião para que precisassem de seus próprios escritos. Isso quer dizer que aceitavam as escrituras em hebraico e entendiam Jesus como o cumprimento da Lei e dos profetas. Esse fato deve nos ajudar a ampliar nossa visão a respeito da unidade bíblica, entendendo que os livros do Novo Testamento foram escritos com base na Torá e nos demais livros da Tanách. Por isso, de certa forma, criou-se uma mentalidade prejudicial na divisão entre Velho e Novo se entendermos tratar-se de uma palavra única que trabalha sobre princípio de alianças redentivas apontando para o cumprimento final em Jesus, o Cristo.
Paulo escreve em 2 Timóteo 3.16 que “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra”. De que escritura está falando? Das suas próprias cartas? Claro que não, fala da Torá, que não deve ser entendida como a Lei, mas como a forma de se “Ensinar sobre a Lei, ou ainda, orientar e instruir”, portanto as definições dadas por Paulo são as mesmas dadas a Torá.
Paulo quando fala de ensinar, de repreender, no sentido de uma convicção ser colocada a prova, corrigir no sentido de aperfeiçoar a vida e o caráter restaurando o estado correto e educar como um treinamento que visa desenvolver a mente e a moral através de exortação e repreensão, lembrando que exortar fala de chamar para o lado e admoestar de fazer pensar corretamente, mesmo que seja necessário repreender ou punir a fim de corrigir os erros e conter as paixões, promovendo crescimento em virtude, está falando da Torá, pois essas eram as escrituras da sua época.
Através das escrituras entendemos um Deus Perfeito que pode através desse processo, nos tornar perfeitos. Justamente por isso, Jesus não veio para anular, destruir ou tornar inútil a Lei e os Profetas, mas sim para cumprir, no sentido de tornar pleno e perfeito o que pela Lei era imperfeito e incompleto. Jesus veio para cumprir a vontade de Deus como deve ser (Lei) e cumprir as suas promessas (Profetas), seguindo a proposta de ampliar e estabelecer apostolicamente. Que continuemos avançando ouvindo, praticando e ensinando (Atos 1.1).
Fraternalmente em Cristo
Anderson Bomfim
[1] A bíblia e a sua História – Stephen M . Miller e Robert V. Huber
[2] A bíblia e a sua História – Stephen M . Miller e Robert V. Huber
[3] A bíblia e a sua História – Stephen M . Miller e Robert V. Huber
[4] A tora (Bereshit) – Marcelo Miranda Guimarães